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A incomum explicação de juíza que autorizou menino a ter uma mãe e dois pais
27 DE ABRIL DE 2022
Em 2019, uma mulher de Salta, no norte da Argentina, teve um bebê junto com seu companheiro, com quem morava há um ano.
Alguns meses depois, sem avisar o namorado, ela entrou em contato com um ex-parceiro para dizer que acreditava que o filho era dele. Um teste de DNA confirmou que este homem era o verdadeiro pai biológico.
Pouco depois dessa revelação, a mulher morreu e o ex-parceiro compareceu ao tribunal para pedir que fosse reconhecido como o verdadeiro pai da criança.
O que poderia ter terminado como uma experiência dramática acabou se revelando uma história comovente na Argentina.
“Foi uma amostra do que é o amor verdadeiro”, disse à BBC News Mundo (serviço de notícias em língua espanhola da BBC) a juíza que presidiu o caso, Ana María Carriquiry, chefe do Tribunal de Família em Salta.
Em uma decisão inusitada, Carriquiry autorizou que ambos os homens — tanto o pai biológico quanto o pai adotivo — tenham a paternidade do menor, que hoje tem 3 anos.
Assim, o pequeno P. — como é identificado no caso — terá a peculiaridade de ser oficialmente filho de uma mãe e dois pais.
A juíza explicou sua decisão ao menino por meio de uma carta que ele poderá ler quando for mais velho.
A mensagem, amplamente reproduzida e aclamada nas redes sociais e na imprensa argentina, usa linguagem simples e inclui uma citação de uma das sagas mais queridas da literatura infantil: Harry Potter.
O caso
A juíza disse que quando recebeu o caso — que agora se tornou viral, mas aconteceu em agosto de 2021 — a situação não era tão pacífica como acabaria se tornando posteriormente.
“Quando o pai biológico iniciou a ação, ele veio com tudo”, lembrou Carriquiry. No pedido inicial, o pai biológico pedia que o reconhecimento paterno do outro homem fosse anulado e entregue a ele.
A juíza também conta que o chamado “pai socioafetivo” da criança ficou arrasado quando descobriu pelo teste de DNA ordenado pelo tribunal que ele não era de fato o pai biológico de P.
“Imagine o estado de desespero daquele homem. Achei que ele não viria para a segunda audiência”, confessou a juíza, que se comoveu com a atitude dele, que acabara de perder a companheira e ao mesmo tempo ficou sabendo que seu filho não era biologicamente seu.
Longe de se irritar e assumir uma postura combativa, o homem a surpreendeu com sua resposta ao processo.
“Ele pediu para continuar sendo o pai, mesmo junto com o outro pai, e disse que não se importava se seu sobrenome fosse o segundo, terceiro ou quarto do menino.”
“Falou com firmeza, com amor, com uma renúncia… esse homem deu aulas sobre o amor e o que é ser pai”, comoveu-se a juíza.
Carriquiry apoiou seu pedido, permitindo a possibilidade de que a criança tivesse uma tríplice filiação, algo que não é reconhecido no Código Civil argentino, embora existam alguns poucos precedentes, tanto na Argentina quanto no exterior.
A única coisa que faltava era que o pai biológico — que a lei argentina considera o único com direito legal à paternidade — concordasse.
A mudança de posição do homem ocorreu quando a juíza convocou o menino para uma audiência, embora ele tivesse apenas 2 anos na época.
“Quando eu deixei a criança entrar, ele se abraçou fortemente a seu único pai para ele, seu pai sócio-afetivo. E lá todo mundo ficou em silêncio”, disse ele.
“Apesar de não falar, ele se expressou. Sem dizer nada, ele falou alto. Com sua linguagem corporal, ele não deixou dúvidas de que tirá-lo de lá estava causando um prejuízo real, porque ele já havia sofrido com a perda recente de sua mãe.”
“Quando o pai biológico viu isso, ele mesmo disse: ‘Eu quero o que mais beneficie meu filho, o que é melhor para ele’.”
“Foi muito louvável ver os dois homens colocarem seu orgulho de lado por aquele menino. Foi um sinal de amor verdadeiro.”
Os dois pais concordaram que o menor continuará morando com o pai adotivo e se relacionará progressivamente com o pai biológico, que também ajudará a sustentar o garoto financeiramente.
“Temos que começar a abrir caminhos, porque para mim as relações socioafetivas determinam a vida das pessoas e a lei. Não pode ser que continuemos com um direito de sangue”, diz Carriquiry na justificativa de sua decisão, que rebate o artigo do Código Civil que limita a paternidade a apenas duas pessoas (mãe e pai).
A carta
Em sua decisão, a juíza determinou que os homens têm a obrigação de contar ao menino a verdade sobre sua história, quando “ele for maduro o suficiente”.
E, observando o protocolo legal, ela também decidiu anexar à sentença a carta que ela própria escreveu para P. ler quando crescer.
“Estou escrevendo para você porque você tem o direito de saber o que decidi e por que fiz isso”, explica ela ao menor.
“Aos juízes, cabe tomar decisões difíceis, mas seu caso foi muito simples, porque o que sobrou foi o amor de seus pais por você”, diz ela na mensagem.
Ela faz referência à falecida mãe do garoto, com uma citação de J.K. Rowling: “Sobre sua mãe, que infelizmente não está mais conosco, quero deixar a frase que Albus Dumbledore disse ao pequeno Harry Potter”.
“Um amor tão poderoso como o que sua mãe teve por você é algo que deixa marcas. Não uma cicatriz, ou qualquer outro sinal visível… ter sido amado tão profundamente, mesmo que aquela pessoa que nos amou não esteja aqui, fornece proteção que dura para sempre.”
“Além de sua mãe, você tem dois pais. Como isso pode ser possível? Também por amor. Ambos te amam igualmente e são seus pais.”
“Às vezes, você tem que decidir entre o pai biológico ou o pai socioafetivo. Nesse caso, eu não tinha nada para decidir, porque eles tinham certeza da importância que o outro tinha na sua vida.”
“Por isso, a única coisa que fiz, P., foi reconhecer o direito que você tem de ter dois pais que te criem, cuidem de você. Porque, no fundo, a única coisa que importa é multiplicar o amor”, concluiu.
“Espero que você esteja muito feliz e sempre orgulhoso de sua mãe e dos pais que a vida lhe deu.”
Fonte: Portal G1
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